Redescobrir o mundo rural

sexta-feira, novembro 18, 2005

Um casamento no Raminho




O alcance dos usos e costumes locais…

Nem só a paisagem natural é singular nesta freguesia também o é a paisagem humana e, por isso, decidi transcrever o relato de um casamento no Raminho.

«Pois fui ao Raminho assistir a um casamento. O que eu vi foi tão curioso que me dispus a revelá-lo aos nossos possíveis leitores.
Convidado por parte da família do noivo, para casa dele me dirigi. Lá foram chegando depois os convidados dessa parte. Em certa altura vi aproximar-se um magote maior de homens. Todos entravam na sala onde estavam várias pessoas da família da casa e as senhoras – lindas senhoras! – suas convidadas.
Um por cada vez se dirige à mesa colocada no meio do aposento, sobre a qual estavam cálices, que iam enchendo de aguardente, e grandes fatias de bolo, um pouco arrufadas de Coimbra. Todos bebem, tiram fatias e saem.
Depois, um dos convivas que eu vim a saber ser o pai da noiva, dirige-se aos seus futuros “parceiros” e pergunta-lhes”se dão ordem para o noivo, o Francisco, sair de casa”.Os pais deste dizem que sim, não sem que vertam sentidas e naturalíssimas lágrimas.
Antes de sair, porém, os seus convidados, que têm estado fora a aguardar que saiam os da noiva, entram também em casa e servem-se de aguardente e do bolo, pois é desconsideração não o fazer. Está-se a ver que eu também tive de provar…
Se até aqui o caso já de si era curioso, mais original se ia tornar.
O noivo, rodeado pelos convidados, levava a seu lado todos os seus amigos que empurravam uma garrida saca.
Logo ali, no limiar da porta, noto que várias pessoas deitam para dentro do saco pratos e bandejas de trigo, coisa, todavia, de que iria ter explicação mais adiante.
Pela rua fora vejo, em todas as portas, outras pessoas com mais pratos cheios do precioso grão, que ia sendo deitado para o saco, acompanhado sempre da frase que se me havia de gravar na memória por largos tempos.
- A nossa casa fica às ordens!
Curioso, vim a saber que é uso na terra oferecer aos noivos, no seu dia grande, o trigo que lhes dê a abastança nos primeiros tempos.
Chegados a casa da noiva todos os convidados voltam a entrar para se servirem de aguardente e bolo que agora a família da donzela oferta.
A noiva aparece. Que distinção! Apesar de ser filha do povo, deste bom povo da Terceira, ela não se envergonharia de casar aí na igreja de Santa Cruz ou na Sé Nova pelo meio dia de Domingo, que é quando se realizam as paradas elegantes da nossa terra…
Até à igreja os noivos continuam a receber mais trigo lançando-lhes algumas pessoas grãos em cima, como nas nossas aldeias fazem com confeitos.
A cerimónia religiosa foi trivialíssima…
À saída, dos noivos, já ao lado um do outro, percorrem outras ruas, onde os seus amigos continuam a encher os sacos de trigo – tanto, que eu calculei que não devem ter necessidade de comprar mais no corrente ano.
Findo um banquete servido ao ar livre a mais de duzentas pessoas, os convidados entram em casa a despedir-se dos noivos, que ali tinham, pela primeira vez, jantado juntos, com mais algumas pessoas de cerimónia.
E, então, aquelas muitas dezenas de pessoas, apertando as mãos aos nubentes, invariavelmente empregavam a frase cantante – que ainda mantenho nos ouvidos:
- A nossa casa fica às ordens!
- E a nossa também! – respondiam os noivos enlevados
Só um assistente não o pode empregar, como era seu desejo: fui eu, que a tenho a muitas centenas de quilómetros.
E é isto um casamento no Raminho, linda terra, sobranceira ao mar.»

Carta enviada pelo Tenente Roque dos Reis para o «Diário de Coimbra», arquivada no Almanaque Açores para 1944, pgs. 76/78

… e a solidariedade floresceu no dia de um casamento no Raminho.

Agradeço às mães as lindas flores e todo o carinho e compreensão que me têm dedicado sempre. Agora puderam perceber como a professora dos vossos filhos também fica constrangida perante as audiências.
Obrigada pela vossa nobreza de sentimentos.

1 Comments:

At 8:55 da manhã, Blogger Desambientado said...

Mas correu tudo muito bem. E a presença das mães....não deixa de ser a melhor oferta que alguém pode ter.
Não vale a pena enervar-mo-nos e pensar que temos uma responsabilidade tão grande como a de suportar o mundo, basta sermos nós mesmos. Ontem parecia carregares esse Mundo. Hoje certamente que já o pousate.

 

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